terça-feira, 17 de setembro de 2013

Medicina socializada?

A saúde como um direito pode parecer uma proposta unânime, mas o debate em torno da medicina socializada é forte. Nos Estados Unidos, por exemplo, a saúde não é vista como uma política universal, em que todos devem ter direito a ela. Nesse sentido, cada um deve, por conta própria, cuidar de si. Aqueles que podem pagam por plano de saúde, aqueles que não, ficam à mercê, ou de hospitais voluntários ou não lhes resta mais nada a não ser conseguir dinheiro para pagar pela saúde. Em outros países, não há custos para entrar em um hospital e ser atendido.

Em Sicko, o controverso cineasta Michael Moore procura contrapor essas visões de saúde. Ele faz uma feroz crítica aos planos de saúde americanos, na qual prevalece a lógica dos mercados em busca de lucro, e a esse tipo de concepção de saúde privada, a qual deve ser paga cada vez que alguém necessita de cuidados médicos. Por outro lado, tece louvas aos sistemas públicos de saúde, em que o cidadão, independente da renda, pode ser atendido de maneira adequada.

Moore, no caso dos Estados Unidos, se foca em como a lógica da maximização dos lucros seria perversa: em busca de evitar altos custos com determinadas cirurgias e outros tipos de cuidados, os médicos procurar ao máximo recusar os pedidos que podem reduzir os lucros dos planos. Nesse sentido, pacientes que precisariam de atendimentos para poderem sobreviver simplesmente ficam à mercê, sem poder serem atendidos. Em alguns casos, esse descaso em busca de maiores lucros leva à morte.

Para contrapor, Moore procura exemplos de outros países como Canadá, França, Inglaterra e Cuba, nos quais há serviços públicos de saúde. Nesse sentido, qualquer um pode ser atendido, independentemente da renda. Mesmo sendo hospitais públicos, os médicos ganham bem (segundo um entrevistado por Moore, mas não seria apenas uma exceção?), a infraestrutura é de alta qualidade, o tempo de espera é curto e os medicamentos são extremamente baratos (Na Inglaterra, os preços são fixos.), diferentemente dos Estados Unidos.

Um direito universal

A questão da saúde socializada (assim como demais direitos) parte de uma questão moral em relação à solidariedade entre os cidadãos de um país ou comunidade. Ao pagar impostos, o indivíduo não paga somente para ele obter saúde, mas para que outros também possam usufruir de um hospital, mesmo que estes últimos não paguem impostos. Mais precisamente: um cidadão rico paga para que, não só ele, mas um pobre que não paga impostos possa ter direito a ser atendido em um sistema público de saúde.

Ou seja, o Estado deve garantir, nesse tipo de argumento, que todos os seus cidadãos possam receber o mesmo tipo de tratamento, independente da renda, e sem que precisem pagar por ela – apenas impostos. 

Portanto, o argumento em prol da saúde socializada é de que a sociedade, nesse caso, é mais importante que o indivíduo isolado. Tirar recursos de alguém para construir um hospital ou fazer uma cirurgia para outra pessoa significa que o direito à propriedade individual – nesse caso, o dinheiro tributado – é suplantado pelo direito da sociedade.

Em outro ponto, a saúde, por ser um direito, nesse caso, não pode ser deixado aos mecanismos de mercado, ou seja, da maximização pelo lucro. Pois, como demonstrado por Moore, os planos de saúde podem se recusar a fazer determinados procedimentos, os quais sejam custosos e, portanto, diminuam os lucros. Assim, somente o governo, que não tem interesses de lucro, pode implementar um sistema de saúde adequado – ou seja, socializar a saúde.

A economia da medicina socializada

Mas será que a saúde seria mesmo um direito ou mesmo que um sistema social de saúde é tão eficaz quanto propagou Michael Moore? Alguns pensam que não. O primeiro argumento contra uma medicina socializada parte do princípio já exposto de que alguns indivíduos não devem pagar pela saúde (ou de direitos) de outros. A afirmação pode ser árdua, mas parte da questão que, para os liberais mais “radicais”, não existem direitos fora do âmbito das trocas voluntárias, com a exceção da propriedade, vida e liberdade. Por que deveria um rico pagar pela saúde de alguém mais pobre, por exemplo?

Mas esse, talvez, nem seja o argumento mais utilizado, até pelo fato de que o argumento moral, muitas vezes, não consegue ser discutido da melhor maneira possível, devido às paixões. Portanto, o argumento econômico é o mais utilizado nesses casos, nesse caso, sendo mais racional.

Argumentam os críticos de um sistema de medicina socializada que, como todo serviço governamental, a saúde pública não seria um serviço adequado. Por serem aparentemente gratuitos, os serviços públicos têm suas demandas aumentadas – tendem ao infinito se é possível afirmar isso – de maneira exponencial. Nesse sentido, como a demanda por esses bens é muito superior aos custos que o governo pode cobrir, deverá haver algum controle ou corte de gastos em determinados segmentos.

A consequência disso é que determinados atendimentos ou não poderão ser ofertados ou serão prestados a uma qualidade inferior, por exemplo: o tempo de espera será muito maior ou o próprio atendimento será feito com equipamentos mais precários. Dessa forma, o governo deverá escolher quais os setores da saúde devem ser privilegiados e quais terão que sofrer os impactos do corte gastos. Isso, obviamente, não condiz com uma medicina socializada.

A única maneira, pensando com a lógica libertária, seria deixar que o mercado resolvesse essa questão, vendendo um produto chamado saúde. Como as empresas privadas gerenciam melhor seus negócios do que o governo, e como há o incentivo do lucro, os serviços de saúde privada seriam, portanto, mais eficazes do que a medicina socializada. Restaria, nesse sentido, aos mais pobres buscar por hospitais voluntários, por exemplo.

Uma questão moral ou econômica ou ambos?

Esse debate sobre a medicina socializada, defendida por Moore em seu documentário, e seus críticos, como os libertários, leva em conta questões morais e econômicas que precisam ser discutidas. É legítimo alguém seja roubado – pelo governo, no caso – para que outros possam usufruir determinados serviços? Mas, por outro lado, até que ponto, em determinados casos, os interesses do indivíduo – em ter que pagar impostos – se sobrepõe à sociedade?

E quanto à questão econômica: pode o governo oferecer serviços de saúde – ou de qualquer outra natureza – de qualidade, como, segundo Moore, os exemplos do Canadá, França e Inglaterra mostram? Ou, até que ponto o serviço nesses países são adequados, ou o SUS – Sistema único de Saúde – no Brasil é o melhor exemplo de como funcionaria a verdadeira saúde pública funciona.
O ponto é que sem se considerarem os argumentos morais e econômicos, o debate sobre se a saúde socializada é boa ou ruim não consegue atingir seus reais objetivos. Se por um lado, a questão moral é importante, a econômica – poderia o governo oferecer tais serviços? Os que defendem o planejamento estatal afirmam que sim; os libertários, que não – é relevante, também. De nada adianta apenas a moral sem a questão da economia e vice-versa.



terça-feira, 10 de setembro de 2013

Por uma história menos maniqueísta

Imagine, leitor, o senhor entrando em uma livraria e se deparando com um livro, cujo título é “O Guia Politicamente Incorreta da História do Brasil”, ou outro chamado: “Guia Politicamente Incorreto da América Latina”. Os títulos chegam a causar algum impacto, mas, imagine ainda, saber que alguns fatos históricos aprendidos em sala aula ou tão disseminados na cultura popular, na verdade não são assim tão simples, como, por exemplo: Che Guevara era um assassino e que não gostava de roqueiros. Ou que os negros também escravizaram outros negros. Esse são alguns exemplos que o leitor dos livros citados acima encontrarão, cujo autor Leandro Narloch – e Duda Teixeira, no “Guia Politicamente Incorreto da América Latina – não tem medo da polêmica e tenta mostrar uma visão histórica um pouco diferente dessa de que há sempre vilões e mocinhos.

A História é sempre mais complexa, porque ao lidar com uma ciência de caráter social e humano, nunca haverá essa ladainha como em programas infantis: heróis de um lado, sempre vítimas e em buscar de acabar com o mal, e de outro, vilões à procura de acabar com suas vítimas. Tratar o Mundo como se fosse apenas preto e branco, bom ou ruim, não se aplica na História. Quando falamos de acontecimentos passados, falamos de ações humanas e quando se tratam delas, não é possível tratá-las com falso simplismo.

Na introdução do “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, o autor descreve esse processo maniqueísta: “Nessa estrutura simplista, o único aspecto que importa é o econômico: o passado vira um jogo de interesses e apenas isso.” Confundir o estudo e a visão complexa da história e deixar de lado o simplismo não é dizer que o estudo da História deve ser totalmente objetivo, pois a total objetividade é impossível tratando-se de seres humanos. O que esses dois livros querem passar é que a História deve ser estudada e analisada a fundo, buscando compreender pensamentos da época, o que de fato acontecia, e não ficar repetindo os mesmos e velhos chavões.

Ao tratar o passado dessa maneira, pode-se cometer o erro de achar que analisando os acontecimentos de maneira mais crítica, o que se faz é negar alguns fatos trágicos. O caso dos negros, por exemplo. Ao dizer que negros, ao conseguirem sua liberdade, também escravizados é uma heresia em tempos politicamente corretos, e, principalmente, negar que os negros sofreram com a escravidão. É claro que os negros sofreram com a escravidão e ninguém pode negar isso – o próprio livro não o nega. A questão é a de que os negros não foram somente vítimas, mas como fizeram parte da escravidão pelo lado dos senhores também. Em um dos trechos em que o autor trata sobre as mulheres escravas que conseguiam suas liberdades, ele diz: “[...] assim que conseguiam economizar para comprar alforria, o próximo passo de muitas negras era adquirir escravos para si própria.” Não é a negação de tudo, mas apenas mostrar que a escravidão não foi algo tão simples assim para explicado de forma simplista e maniqueísta: brancos – vilões – e negros – vítimas.

No caso dos índios, o mesmo aconteceu, já que algumas tribos ajudaram os portugueses a derrubar outras tribos inimigas ou também que que os próprios indíos devastavam as florestas, diferentemente daquela imagem pura e épica: “As tribos que habitavam a região da Mata Atlântica botavam o mato abaixo com facilidade, usando uma ferramenta muito eficaz.”  No caso dos índios da América Espanhola, alianças com os colonizadores e comemorações quando se derrotava um tribo ou um império, como os Astecas, eram comuns: “Boa parte dos povos andinos ficou aliviada com a execução [do imperador Atahualpa] e comemorou a queda dos incas”. Não que isso justifique a postura cruel dos espanhóis diante dos Incas ou de qualquer outro povo, mas a questão é a de que os índios nem foram tão vítimas, como também não foram vilões, e sim, foram agentes de sua própria história.

Outros dois grandes mitos retratatos são os de Che Guevara e Símon Bolívar, ambos retratados como grandes heróis da América. É verdade que os dois tiveram papéis decisivos na Revolução Cubana e na Guerra de Independência, respectivamente. Mas tratá-los como heróis implacáveis e como símbolos máximos de um continente já é um pouco de exagero, ainda que tenham sido grandes personalidades. O guerrilheiro argentino fuzinou mais do que centenas de pessoas em nome de um ideal – para alguns utopicos, mas pouco importa, matar por uma ideologia, por qualquer que seja, não deve servir de justificativa. Ele pregava tais atos como motor da revolução. Leandro Narloch e Duda Teixeira citam um discurso de Che: “O ódio como fator de luta, ódio intransigente ao inimigo, que para além das limitações naturais dos ser humano o converte em uma efetiva, violenta, seletiva e fria máquina de matar. Nossos soldados têm de ser assim; um povo sem ódio não pode triunfar sobre o inimigo brutal.” O herói da juventude, também era contra a liberdade artística e contra a própria contracultura: “O novo governo logo limitou a liberdade artística e passou a perseguir hippies e roqueiros.

Simón Bolívar, tido como herói da independência, foi uma figura realmente importante para o que hoje conhecemos como América Latina, ajudando em sua libertação política. Porém ele defendia claramente uma ditadura, como ele mesmo disse: “Estou convencido do tutano dos meus ossos que a América só pode ser governada por um despotismo hábil.” Hoje tido com um ídolo da esquerda latino-americana, Bolívar era cultuado por ditadores intitulados de “direita”como Mussolini, que o descreveu como “herói honesto, empurrado por uma energia incontrolável e às vezes cruel, semelhante à que animava aos primeiros conquistadores, digna de sua própria linhagem.” O libertador tinha o mesmo pensamento fascista de 
Mussolini: “Se a minha morte contribuir para que acabem os partidos políticos e se consolide a União, eu baixarei tranquilo ao sepulcro.”


Portanto a história não pode ser tratada no velho maniqueísmo, mas deve interpretar e analisar profundamente os fatos e não ficar presa aos velhos chavões. Deve-se libertar das ideologias que pretendem apenas doutrinar e manipular, seja ela de cunho socialista, capitalista, e se focar nos fatos da maneira mais complexa possível. Também não precisa ser totalmente politicamente incorreta, mas sendo menos maniqueísta, já está de bom tamanho. 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

A hegemonia lulista e o precariado

O período lulista foi caracterizado por uma melhora na distribuição renda, principalmente a partir de programas de transferência de renda, como o bolsa-família. Porém, em trabalhos recentes, o sociólogo Ruy Braga demonstra como a hegemonia lulista ajudou a solapar as bases sindicais dos países e como as políticas econômicas ajudaram a criar consentimento no precariado brasileiro.

Em “A política do precariado”, esse sociólogo demonstra como o capitalismo periférico, através do sistema fordista, apesar de trazer certas melhoras para esses trabalhadores não e semi-qualificados melhoras materiais, até devido à mudança do campo para a cidade, não trouxe melhorias de vida consideráveis. A regulação populista dos sindicatos ainda assim não conseguia conter certa insatisfação social.

Nos anos 70, a deterioração das condições do trabalho e os baixos salários, a inquietação social aumentou. Os sindicatos perceberam que era o momento de agir de maneira combativa contra o que Ruy Braga chama de aliança empresarial-militar.  Não à toa, os sindicatos, tanto sua alta esfera com suas bases, agiram de maneira a confrontar a situação dos trabalhadores e a situação política no Brasil.

Porém, com a derrota no início dos anos 80, o sindicalismo dos metalúrgicos percebeu que essa atitude combativa poderia minar todo seu poder burocrático – como escreveu o sociólogo – e no período da hegemonia lulista, os sindicalistas se fundiram ao Estado para gerir fundos de pensão. Assim, os sindicalistas, antes combates da aliança empresarial-militar, agora, através do dinheiro desses fundos, ajudam a fazer grandes fusões e a permitir o investimento capitalista.

Como Ruy Braga demonstra hoje como precariado brasileiro está fortemente ligado ao setor de telemaketing, em que prevalecem condições de baixa remuneração (1,5 salários mínimos), alta rotatividade e algumas condições precárias de trabalho. Por outro lado, o sociólogo mostra certo apoio diante das políticas governamentais e da própria adaptação a esse tipo de trabalho.

Ou seja, a hegemonia lulista transformou a política sindical no avesso: ao cooptar sindicalistas para o Estado e através das políticas econômicas, a inquietação social se reduziu e, em contrapartida, o consentimento do governo aumentou. A postura combativa dos sindicatos foi substituída pela aceitação.

Mesmo assim, nos últimos anos as greves aumentaram – como nas obras do PAC, por exemplo – mostrando que esse consentimento não pode ser permanente, pois apesar da satisfação com certo progresso material, as condições de trabalho continuam precárias, o que tem gerado insatisfação nesses trabalhadores, inclusive nos teleoperadores, os quais parecem estar construindo uma nova consciência de classe, segundo Ruy Braga. Como este afirmou em entrevista: “Meu argumento é de que o precariado está inquieto, isto é, percebe que o atual modelo trouxe certo progresso, mas conclui que este progresso é transitório.”
           
Se o lulismo conseguiu amenizar a inquietação social, esta continua presente no precariado brasileiro. Por mais que a política econômica e a cooptação dos sindicatos tenha gerado o consentimento diante das condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo e pelo modelo pós-fordista financeira, os trabalhadores estão começando a se inquietar. A dialética da hegemonia lulista não vai durar para sempre. A história ensinou que quando os trabalhadores foram fortes, mudanças importantes aconteceram no seio da sociedade brasileira.