A saúde como um direito pode parecer uma proposta
unânime, mas o debate em torno da medicina socializada é forte. Nos Estados
Unidos, por exemplo, a saúde não é vista como uma política universal, em que
todos devem ter direito a ela. Nesse sentido, cada um deve, por conta própria,
cuidar de si. Aqueles que podem pagam por plano de saúde, aqueles que não,
ficam à mercê, ou de hospitais voluntários ou não lhes resta mais nada a não
ser conseguir dinheiro para pagar pela saúde. Em outros países, não há custos
para entrar em um hospital e ser atendido.
Em Sicko, o controverso cineasta Michael Moore
procura contrapor essas visões de saúde. Ele faz uma feroz crítica aos planos
de saúde americanos, na qual prevalece a lógica dos mercados em busca de lucro,
e a esse tipo de concepção de saúde privada, a qual deve ser paga cada vez que
alguém necessita de cuidados médicos. Por outro lado, tece louvas aos sistemas
públicos de saúde, em que o cidadão, independente da renda, pode ser atendido
de maneira adequada.
Moore, no caso dos Estados Unidos, se foca em como a
lógica da maximização dos lucros seria perversa: em busca de evitar altos
custos com determinadas cirurgias e outros tipos de cuidados, os médicos
procurar ao máximo recusar os pedidos que podem reduzir os lucros dos planos.
Nesse sentido, pacientes que precisariam de atendimentos para poderem
sobreviver simplesmente ficam à mercê, sem poder serem atendidos. Em alguns
casos, esse descaso em busca de maiores lucros leva à morte.
Para contrapor, Moore procura exemplos de outros
países como Canadá, França, Inglaterra e Cuba, nos quais há serviços públicos
de saúde. Nesse sentido, qualquer um pode ser atendido, independentemente da
renda. Mesmo sendo hospitais públicos, os médicos ganham bem (segundo um
entrevistado por Moore, mas não seria apenas uma exceção?), a infraestrutura é
de alta qualidade, o tempo de espera é curto e os medicamentos são extremamente
baratos (Na Inglaterra, os preços são fixos.), diferentemente dos Estados
Unidos.
Um
direito universal
A questão da saúde socializada (assim como demais
direitos) parte de uma questão moral em relação à solidariedade entre os
cidadãos de um país ou comunidade. Ao pagar impostos, o indivíduo não paga
somente para ele obter saúde, mas para que outros também possam usufruir de um
hospital, mesmo que estes últimos não paguem impostos. Mais precisamente: um
cidadão rico paga para que, não só ele, mas um pobre que não paga impostos
possa ter direito a ser atendido em um sistema público de saúde.
Ou seja, o Estado deve garantir, nesse tipo de
argumento, que todos os seus cidadãos possam receber o mesmo tipo de
tratamento, independente da renda, e sem que precisem pagar por ela – apenas
impostos.
Portanto, o argumento em prol da saúde socializada é de que a
sociedade, nesse caso, é mais importante que o indivíduo isolado. Tirar
recursos de alguém para construir um hospital ou fazer uma cirurgia para outra
pessoa significa que o direito à propriedade individual – nesse caso, o
dinheiro tributado – é suplantado pelo direito da sociedade.
Em outro ponto, a saúde, por ser um direito, nesse
caso, não pode ser deixado aos mecanismos de mercado, ou seja, da maximização
pelo lucro. Pois, como demonstrado por Moore, os planos de saúde podem se
recusar a fazer determinados procedimentos, os quais sejam custosos e,
portanto, diminuam os lucros. Assim, somente o governo, que não tem interesses
de lucro, pode implementar um sistema de saúde adequado – ou seja, socializar a
saúde.
A economia da medicina socializada
Mas será que a saúde seria mesmo um direito ou mesmo
que um sistema social de saúde é tão eficaz quanto propagou Michael Moore?
Alguns pensam que não. O primeiro argumento contra uma medicina socializada
parte do princípio já exposto de que alguns indivíduos não devem pagar pela
saúde (ou de direitos) de outros. A afirmação pode ser árdua, mas parte da
questão que, para os liberais mais “radicais”, não existem direitos fora do
âmbito das trocas voluntárias, com a exceção da propriedade, vida e liberdade.
Por que deveria um rico pagar pela saúde de alguém mais pobre, por exemplo?
Mas esse, talvez, nem seja o argumento mais
utilizado, até pelo fato de que o argumento moral, muitas vezes, não consegue
ser discutido da melhor maneira possível, devido às paixões. Portanto, o
argumento econômico é o mais utilizado nesses casos, nesse caso, sendo mais
racional.
Argumentam os críticos de um sistema de medicina
socializada que, como todo serviço governamental, a saúde pública não seria um
serviço adequado. Por serem aparentemente gratuitos, os serviços públicos têm
suas demandas aumentadas – tendem ao infinito se é possível afirmar isso – de
maneira exponencial. Nesse sentido, como a demanda por esses bens é muito
superior aos custos que o governo pode cobrir, deverá haver algum controle ou
corte de gastos em determinados segmentos.
A consequência disso é que determinados atendimentos
ou não poderão ser ofertados ou serão prestados a uma qualidade inferior, por
exemplo: o tempo de espera será muito maior ou o próprio atendimento será feito
com equipamentos mais precários. Dessa forma, o governo deverá escolher quais
os setores da saúde devem ser privilegiados e quais terão que sofrer os
impactos do corte gastos. Isso, obviamente, não condiz com uma medicina
socializada.
A única maneira, pensando com a lógica libertária,
seria deixar que o mercado resolvesse essa questão, vendendo um produto chamado
saúde. Como as empresas privadas gerenciam melhor seus negócios do que o
governo, e como há o incentivo do lucro, os serviços de saúde privada seriam,
portanto, mais eficazes do que a medicina socializada. Restaria, nesse sentido,
aos mais pobres buscar por hospitais voluntários, por exemplo.
Uma
questão moral ou econômica ou ambos?
Esse debate sobre a medicina socializada, defendida
por Moore em seu documentário, e seus críticos, como os libertários, leva em
conta questões morais e econômicas que precisam ser discutidas. É legítimo
alguém seja roubado – pelo governo, no caso – para que outros possam usufruir
determinados serviços? Mas, por outro lado, até que ponto, em determinados
casos, os interesses do indivíduo – em ter que pagar impostos – se sobrepõe à
sociedade?
E quanto à questão econômica: pode o governo
oferecer serviços de saúde – ou de qualquer outra natureza – de qualidade,
como, segundo Moore, os exemplos do Canadá, França e Inglaterra mostram? Ou,
até que ponto o serviço nesses países são adequados, ou o SUS – Sistema único
de Saúde – no Brasil é o melhor exemplo de como funcionaria a verdadeira saúde pública
funciona.
O ponto é que sem se considerarem os argumentos
morais e econômicos, o debate sobre se a saúde socializada é boa ou ruim não
consegue atingir seus reais objetivos. Se por um lado, a questão moral é
importante, a econômica – poderia o governo oferecer tais serviços? Os que
defendem o planejamento estatal afirmam que sim; os libertários, que não – é relevante,
também. De nada adianta apenas a moral sem a questão da economia e vice-versa.