segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O elo entre regimes autoritários e a sociedade

Tanto na história como em muitos debates sobre os regimes autoritários, o maniqueísmo entre as resistências (sociedade) e os vilões ditadores (Estado) tenta eliminar a parcela de culpa da sociedade para com tais governos. O próprio debate sobre a corrupção, nos dias atuais, tenta colocar a culpa unicamente na classe política, dando a impressão que o próprio povo é sempre contra e não como um dos atores no filme da corrupção e dos governos ditatoriais. Essa velha tática do maniqueísmo pode ser útil para criar heróis, mas não deve ser considerado em uma análise mais profunda sobre a história e a realidade. Afinal, o mundo é bem mais complexo.

É dessa maneira que se pode resumir a série de três volumes organizados pelas professoras Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat, denominado “A Construção Social dos Regimes Autoritários”. A história desses regimes na Europa, América Latina, África e Ásia mostra de maneira brilhante como a sociedade tem sua parcela de responsabilidade pelo que ocorreu em sua história. Neste livro, o maniqueísmo perde sua beleza e os textos presentes colocam o dedo na ferida em se tratando de regimes não-democráticos.

 Na introdução, questiona-se quando se diz que os governos autoritários se legitimaram através e apenas pelo uso da força. “Por muito tempo, a ênfase das abordagens das experiências esteve no poder das forças coercitivas; o ângulo de obervação do historiador, o Estado; o objeto a ser valorizado, a resistência. O principal problema que as interpretações colocaram, provavelmente, é não ter compreendido os regimes autoritários e as ditaduras como produto social.”

A sociedade não é uma entidade passiva, mudando muitas vezes de lado de acordo com o momento. O caso do Irã é bem claro. Aqueles que apoiaram o Xá, o fizeram pelo lado econômico positivo, conquistado através da “ocidentalização”do país. O governo também conquistou apoio dos grupos liberais, ao mesmo tempo em que sua proposta de nação também lhe dava adeptos da parte conservadora da sociedade. Com o tempo e o aumento das repressões do governo Xá, as idéias de dar mais poder ao Islã( já que a “Revolução Branca” feita por Reza Pahlavi buscava por criar uma sociedade laica) começava a ganhar força. Além do mais, o progresso à imagem do Ocidente começaram a perder força. A sociedade iraniana preferia, agora, o lado de Khomeini, o qual tinha uma proposta de nação bem diferente da do Xá.

Murilo Meihy, autor do artigo, descreveu esse processo: “Por isso não há como defender a ideia de que o Irã sempre esteve fadado às artimanhas do poder exercido de forma arbitrária. Ainda que a Ásia continue lamentavelmente sendo vista como um espaço para o despotismo, é inegável que a política do Irã não possa ser vista como um drama assistido passivamente pelo seu povo.”

As sociedades são diferentes, o que cria diferentes tipos de consenso. O bem-estar econômico e social são fatores importantes na legitimação, mas não são os únicos diante do complexidade do contexto social. Nem sempre a economia foi fundamental para legitimar, pois se somente ela define a continuidade e queda de um regime, países menos prósperos como Cuba, por exemplo, não haveria qualquer tipo regime autoritário há anos. Outros elementos são importantes, tais como: o nacionalismo e o anti-imperialismo são fundamentais para os regimes comunistas e socialistas como Cuba e Coréia do Norte – este último baseando-se na tríade: Memória, sagrado e encantamento. Dentre outros elementos e fatores que sustentam ditaduras ao redor do Mundo.
           
Na Alemanha Nazista não foi apenas a doutrinação ideológica que deu consenso ao governo de Hitler, mas a prisão dos chamados “marginais sociais”, como bandidos, prostitutas, e posteriormente os judeus entraram nessa classificação. Robert Gellately descreveu sobre esse elemento da consolidação nazista: “Apesar disso tudo, muitos que viveram o período tiveram a impressão, não apenas devido aos festivais, às promessas para o futuro e à exibição inebriante, mas exatamente devido aos esforços impendiosos para combater os marginais sociais.”

 Denise e Samantha, as organizadoras, escreveram dois artigos sobre a Associação Brasileira de Imprensa e sobre a juventude no contexto chileno, respectivamente, mostram que uma instituição – como a ABI e/ou a juventude – não são unânimes e muitas vezes há discordâncias ou pensar-duplo. Sobre a ABI, instituição tida como uma forte resistência durante a ditadura militar brasileira, Denise escreve:

“Inspirada em Laborie [outro pensador que escreve para o livro], diria que a ABI não foi, primeiro, defensora dos militares , e, depois resistente à ditadura, como foi Ulysses Guimarães. A recuperação das discussões e embates, cujo eixo foi a liberdade de expressão e de jornalistas, até o desencadeamento do projeto de abertura política Geisel Golbery, indica que esteve mais próxima do penser-double do que a trincheira do inexpugnável. Não era coesa, abarcava embates que desapareceram da memória. Mas, sobretudo, era ambivalente, capaz de ser a favor e contra os militares ao mesmo tempo.

 Sobre a juventude chilena no contexto da década de 70, havia embate entre os mais “progressistas”que defendiam o governo de Salvador Allende e outros, contrários a ele e que ajudaram a legitimar o governo Pinochet. Samantha descreve que a juventude não pode ser um conceito homogêneo. Ao falar em juventude é preciso ver as diferentes visões, diferentes classes e, se podemos dizer, outros tipos de sonhos. No Chile de Allende, os jovens não eram tão progressistas e sonhadores como a juventude é na maior das vezes caracterizada, mas havia jovens mais conservadores e que de maneira alguma apoiaram a Unidade Popular chilena.

Ao observar a história de uma maneira mais complexa é possível ver os erros que foram cometidos de forma mais abrangente. O trabalho realizado nos três volumes não quer negar a importância das resistências, que tiveram seu papel, mas tentar mostrar que a própria sociedade, entendida como resistência, por momentos desejou ou legitimou ditaduras. Em algumns lugares, até aqueles que eram contrários a tais governos acabaram por se silenciar também ao invés de lutar. Assim como a juventude no caso chileno, o contexto social nunca é homogêneo, mas bem mais heterogêneo e complexo. O elo entre a sociedade e os regimes autoritários é bem mais próximo do que se imagina. 


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