Tanto na
história como em muitos debates sobre os regimes autoritários, o maniqueísmo
entre as resistências (sociedade) e os vilões ditadores (Estado) tenta eliminar
a parcela de culpa da sociedade para com tais governos. O próprio debate sobre
a corrupção, nos dias atuais, tenta colocar a culpa unicamente na classe
política, dando a impressão que o próprio povo é sempre contra e não como um
dos atores no filme da corrupção e dos governos ditatoriais. Essa velha tática
do maniqueísmo pode ser útil para criar heróis, mas não deve ser considerado em
uma análise mais profunda sobre a história e a realidade. Afinal, o mundo é bem
mais complexo.
É dessa
maneira que se pode resumir a série de três volumes organizados pelas
professoras Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat, denominado “A Construção
Social dos Regimes Autoritários”. A história desses regimes na Europa, América
Latina, África e Ásia mostra de maneira brilhante como a sociedade tem sua
parcela de responsabilidade pelo que ocorreu em sua história. Neste livro, o
maniqueísmo perde sua beleza e os textos presentes colocam o dedo na ferida em
se tratando de regimes não-democráticos.
Na
introdução, questiona-se quando se diz que os governos autoritários se
legitimaram através e apenas pelo uso da força. “Por muito tempo, a ênfase
das abordagens das experiências esteve no poder das forças coercitivas; o
ângulo de obervação do historiador, o Estado; o objeto a ser valorizado, a
resistência. O principal problema que as interpretações colocaram,
provavelmente, é não ter compreendido os regimes autoritários e as ditaduras
como produto social.”
A
sociedade não é uma entidade passiva, mudando muitas vezes de lado de acordo
com o momento. O caso do Irã é bem claro. Aqueles que apoiaram o Xá, o fizeram
pelo lado econômico positivo, conquistado através da “ocidentalização”do país.
O governo também conquistou apoio dos grupos liberais, ao mesmo tempo em que
sua proposta de nação também lhe dava adeptos da parte conservadora da
sociedade. Com o tempo e o aumento das repressões do governo Xá, as idéias de
dar mais poder ao Islã( já que a “Revolução Branca” feita por Reza Pahlavi
buscava por criar uma sociedade laica) começava a ganhar força. Além do mais, o
progresso à imagem do Ocidente começaram a perder força. A sociedade iraniana
preferia, agora, o lado de Khomeini, o qual tinha uma proposta de nação bem
diferente da do Xá.
Murilo
Meihy, autor do artigo, descreveu esse processo: “Por isso não há como defender a
ideia de que o Irã sempre esteve fadado às artimanhas do poder exercido de
forma arbitrária. Ainda que a Ásia continue lamentavelmente sendo vista como um
espaço para o despotismo, é inegável que a política do Irã não possa ser vista
como um drama assistido passivamente pelo seu povo.”
As
sociedades são diferentes, o que cria diferentes tipos de consenso. O bem-estar
econômico e social são fatores importantes na legitimação, mas não são os
únicos diante do complexidade do contexto social. Nem sempre a economia foi
fundamental para legitimar, pois se somente ela define a continuidade e queda
de um regime, países menos prósperos como Cuba, por exemplo, não haveria
qualquer tipo regime autoritário há anos. Outros elementos são importantes,
tais como: o nacionalismo e o anti-imperialismo são fundamentais para os
regimes comunistas e socialistas como Cuba e Coréia do Norte – este último
baseando-se na tríade: Memória, sagrado e encantamento. Dentre outros elementos
e fatores que sustentam ditaduras ao redor do Mundo.
Na
Alemanha Nazista não foi apenas a doutrinação ideológica que deu consenso ao
governo de Hitler, mas a prisão dos chamados “marginais sociais”, como
bandidos, prostitutas, e posteriormente os judeus entraram nessa classificação.
Robert Gellately descreveu sobre esse elemento da consolidação nazista: “Apesar disso tudo, muitos que
viveram o período tiveram a impressão, não apenas devido aos festivais, às
promessas para o futuro e à exibição inebriante, mas exatamente devido aos
esforços impendiosos para combater os marginais sociais.”
Denise
e Samantha, as organizadoras, escreveram dois artigos sobre a Associação
Brasileira de Imprensa e sobre a juventude no contexto chileno,
respectivamente, mostram que uma instituição – como a ABI e/ou a juventude –
não são unânimes e muitas vezes há discordâncias ou pensar-duplo. Sobre a ABI,
instituição tida como uma forte resistência durante a ditadura militar
brasileira, Denise escreve:
“Inspirada
em Laborie [outro pensador que escreve para o livro], diria que a ABI não foi,
primeiro, defensora dos militares , e, depois resistente à ditadura, como foi
Ulysses Guimarães. A recuperação das discussões e embates, cujo eixo foi a
liberdade de expressão e de jornalistas, até o desencadeamento do projeto de
abertura política Geisel Golbery, indica que esteve mais próxima do penser-double do que a trincheira do inexpugnável.
Não era coesa, abarcava embates que desapareceram da memória. Mas, sobretudo,
era ambivalente, capaz de ser a favor e contra os militares ao mesmo tempo.
Sobre
a juventude chilena no contexto da década de 70, havia embate entre os mais
“progressistas”que defendiam o governo de Salvador Allende e outros, contrários
a ele e que ajudaram a legitimar o governo Pinochet. Samantha descreve que a
juventude não pode ser um conceito homogêneo. Ao falar em juventude é preciso
ver as diferentes visões, diferentes classes e, se podemos dizer, outros tipos
de sonhos. No Chile de Allende, os jovens não eram tão progressistas e
sonhadores como a juventude é na maior das vezes caracterizada, mas havia
jovens mais conservadores e que de maneira alguma apoiaram a Unidade Popular
chilena.
Ao observar a história de uma maneira mais complexa é
possível ver os erros que foram cometidos de forma mais abrangente. O trabalho
realizado nos três volumes não quer negar a importância das resistências, que
tiveram seu papel, mas tentar mostrar que a própria sociedade, entendida como
resistência, por momentos desejou ou legitimou ditaduras. Em algumns lugares,
até aqueles que eram contrários a tais governos acabaram por se silenciar
também ao invés de lutar. Assim como a juventude no caso chileno, o contexto
social nunca é homogêneo, mas bem mais heterogêneo e complexo. O elo
entre a sociedade e os regimes autoritários é bem mais próximo do que se
imagina.
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